#CAPÍTULO 18 – OS DISCOS NA HISTÓRIA DO OLIVIER
Nessa altura da minha vida, meados de 1975, estava muito independente e revoltado com os meus pais e queria desfrutar, cada vez mais, a liberdade que havia encontrado em minhas fugas noturnas.
Estava vivendo aventuras inimagináveis para a minha idade, algumas perigosas, outras encantadoras.
Eram tantos os riscos que assumia puxando o rabo do diabo, que algum dia a corda haveria de se romper: o inevitável aconteceu.
Estava no meio do ano escolar, quando tomei uma semana de suspensão da Maitrise de Montmatre.
Havia brigado no pátio da escola, hora do recreio, porque um colega de internato havia me chamado de “bougnoule”.
A palavra injuriosa, pejorativa e racista, era uma ofensa muito comum na época e mexeu muito comigo.
A pesar minha mãe ser loira, de olhos azuis, tipo alemã, já que o seu pai era um graduado militar alemão (da Segunda Guerra), o meu pai, originário de Tours, vale do Rio Loire e de família materna nativa e com vários séculos na região, fazia correr em nossas veias sangue Maure, o que explica essa agressão de cunho racial.
Minha pele morena e cabelo escuro, em contraste com meus irmãos Loïc e Heloise, loiros, criavam uma duvida sobre a minha origem exclusivamente francesa.
A independência da Argélia, ano 1962 e suas feridas mal cicatrizadas, havia provocado maciça imigração de milhares de famílias muçulmanas argelinas e de “Pieds Noirs”, colonos francês e judeu-frances sefarates de origem portuguesa e espanhola, criando uma forte rejeição contra imigrantes por parte da população Gaulesa, iniciando um movimento de extrema xenofobia que se instalou na França tradicional.
Todos que não tinham aparência nitidamente francêsa eram “Métèques”, aqueles que mudaram de residência, de país, com suas culturas e religiões.
Bougnoule e Bico, eram as duas injurias utilizadas para denegrir e humilhar quem era ou tinha aparência de ser árabe.
Sofria muito com isso.
Toda minha vida ate essa época sofri bulling na escola, como em casa, com Loïc, 13 anos, meu irmão mais novo. Ele, quando contrariado, com ódio nos olhos e veneno na boca, fazia jorrar essa palavra destruidora colocando claramente em duvida minha legitimidade familiar.
Por incrível que pareça, já sofri de preconceito e racismo.
Todas as minhas brigas na escola e com meu irmão partiam dessas investidas e, nesse dia, no pátio do recreio, Provencel, o menino com quem eu briguei, me cuspiu essa palavra que me afetava profundamente.
Nos internatos, desde 8 anos de idade, tinha desenvolvido um instinto de defesa e sobrevivência que eram bem amadurecidos.
Estraguei o rapaz e isso me valeu uma semana de suspensão, supostamente na casa do meu pai.
A oficialização do “castigo” para os pais, era feita por intermédio do caderno de correspondência que entregávamos a eles para assinar nos finais de semana.
Por esse sistema nossos pais tomavam conhecimento das notas e dos nossos resultados escolares como também dos comentários oficiais.
Desmotivado e frustrado pela minha vida com meu pai, impregnado pela minha liberdade roubada, decidi mentir e falsificar sua assinatura.
Na segunda feira sai de casa, como de costume, levando minha bolsa de roupas de troca por uma semana de internato e minha mochila escolar nas costas para descer a escada de Montmatre, que ligava a rue Cortot com a rue De La Bonne, e à direita ate chegar ao portão do pensionato.
A esquerda da escada, a rua mudava de nome e se chamava Saint Vincent.
Descendo por ela cheguei ao prédio do meu amigo David, na rue Caulaincourt (ver capitulo 13).
Na casa dele eu passei uma semana incrivelmente excitante. Pela primeira vez na minha vida, estive livre como o ar.
Para sobreviver nessa realidade efêmera, meu porquinho onde havia juntado minhas economias, não resistiu.
Após 5 dias de plena felicidade e bêbado de euforia, igual um potrinho solto no pasto depois de se ver livre do curral, tinha que voltar à realidade.
Na sexta feira, como sempre vinha fazendo todas as outras, meu pai deveria me pegar na saída da Maitrise, na calçada em frente do portão, com todos os outros pais, as 17:00.
Meia hora antes, me apresentei na portaria e driblei o porteiro alegando que estava indo entregar o meu boletim ao padre-diretor.
Ele me deixou entrar e escondido no banheiro do pátio, esperei o sino tocar, anunciando o fim das aulas. Quando ouvi o barulho dos alunos atravessando o pátio, sai do meu esconderijo e peguei o caminho da saída no meio deles (ver foto do pátio da escola no capitulo 14).
Encontrei o Dr Anquier na calçada me esperando, cigarro na boca e mãos no bolso do seu casaco de lã Loden.
Fingi muito bem, apesar da angustia de ver aparecer um professor enquanto estávamos lá.
Dei-lhe um beijo, ele me perguntou como eu estava e como tinha sido a semana.
Respondi vagamente e iniciei o movimento para sair da frente do portão e continuar caminhando rua abaixo ate a escada no inicio da rue Cortot e final da rue du Mont Cenis.
Esse desenho complicado de ruas e escadas acontecia numa área de cem metros quadrados, não mais que isso. Quando iniciamos finalmente a caminhada ate nossa casa, meu sangue gelou de uma vez. Subindo a rua a passos largos vi o padre-diretor, 50 metros abaixo, bem na nossa frente e na mesma calçada.
O encontro era inevitável como também a gota de suor de medo que deslizou do meu couro cabeludo e desceu lentamente pela fossa temporal ate o pescoço.
– “Bonjour Monsieur Anquier!”, cumprimentou o Superior ao alcançar a gente: “ Olivier conseguiu se acalmar essa semana em casa?”
Meu pai o fixou de olhos arregalado e cheios de pontos de interrogação e perguntou:
– “como assim?”
– “O senhor me parece não saber que o seu filho foi exonerado do colégio por uma semana…” respondeu o padre com surpresa.
Quando soube da verdade, vi o rosto do meu pai se transformar e mudar de cor. O diretor o convidou para dar mais detalhes no seu escritório para onde seguimos em clima tenso.
Meu pai não esperou que voltássemos para casa.
Ali mesmo, na sala do diretor, me deu a última magistral surra que me aplicou em toda sua vida.
Doeu muito e a revolta soou como trovoada, a mesma trovoada da introdução da faixa Riders On The Storm, do álbum L.A Woman dos Doors.
Uma banda já muito famosa que me foi apresentada pelos novos amigos que tinha feito nas andanças de uma semana em Paris e hospedado no quarto do amigo David Rebreiyant.
Desfrutem desse som ate a semana que vem. Voltarei com mais uma etapa da minha vida sequênciada pelas musicas que a pontuaram.
Nessa foto de 1965 em La Courneuve, tenho 6 anos de idade e estou cercado dos meus amigos de infância, os únicos ate hoje próximos, Jerôme e Franck Charbit, Filhos de um casal de amigos judeus “Pieds Noirs” dos meus pais.
Veja e ouça o video: