#CAPÍTULO 17 – OS DISCOS NA HISTÓRIA DO OLIVIER
Todo adolescente urbano sente nas suas pulsações a ânsia de frequentar casa noturnas.
Hoje é normal e bastante comum os pais darem aval aos filhos para o uso de carteira de identidade adulterada, que permitem entrar e se divertir nesses tipos de estabelecimentos.
Na minha geração isso era inconcebível.
A questão nem sequer era abordada.
O máximo permitido era ir a um aniversario dançante de colegas da escola… uma vez ou outra.
Não escapei dessa pulsão exacerbada pela intensa vida clandestina que eu levava durante as semanas de aulas, supostamente domiciliado no dormitório do internato de padres da “ Maitrise de Montmartre”, colégio que frequentava nesse ano de 1975.
Nos fins de semana que não íamos para Ronquerole, no Chateau Blanc dos Proust, (ver capitulo 11) quando o meu pai estava de plantão como anestesista na clinica do Landy, ficávamos em Paris, rue Cortot.
Durante a semana, todas as noites eu fugia do pensionato que ficava a uma escada de Montmartre, casa do meu pai, e encontrava meu amigo de colégio David Rebreyant no seu quarto, que havia sido da empregada e foi revitalizado como quarto de jovem filho único de pais liberais, no ultimo andar do prédio aonde eles moravam.
A partir dali saiamos e passávamos a noite toda circulando por Montmartre e seus arredores (ver capitulo 14 e 15).
Quando meu pai e eu ficávamos em Paris, os fins de semana eram intensos e carregados de adrenalina.
Eu que já podia ser considerado mestre em fugas noturnas do internato, acabei virando mestre de escapadas do Sábado a noite.
O desafio era sair no meio da noite do apartamento, sem acordar meu pai que roncava alto no seu quarto sem porta.
O quarto dele dava acesso direto ao corredor de entrada.
Passar por ali era um risco que valeria uma boa cena de filme.
A distribuição dos cômodos do apartamento partia de um longo corredor em L que, da porta de entrada pesada e blindada, passava em frente a cozinha , logo a esquerda.
Continuando cinco passos à frente, vinha o quarto dos meus irmãos (que vinham raramente) e mais adiante a sala de banho.
Em frente à porta de entrada, no final do corredor, em linha reta, tinha a sala media, com mesa de jantar e quatro cadeiras.
Mais que jantares, essa mesa era usada como escritório, pois ficava encostada na parede que separava o quarto do corredor.
Protegida, estava a cama dupla do meu pai, invariavelmente coberta de uma colcha improvisada, um antigo Pancho peruano preto e vermelho de Alpaca, bonito, mas duro, abrasivo e pouco convidativo.
Todo o apartamento tinha assoalho de tábua corrida e barulhenta, rangia a cada passo por mais leve que fosse.
O quarto do meu pai e meu eram cobertos de tapetes que abafavam um pouco o ruído do assoalho.
Assim, fugir à noite significava conhecer perfeitamente os pontos de passagem aonde os meus pês fizessem menos barulho.
Meu conhecimento prévio desse roteiro me ensinou os caminhos mais seguros.
Saia do meu quarto ate a frente do quarto do meu pai, de pernas abertas, um pé em cada lado do corredor, encostados ao máximo próximos da base das paredes, aonde a madeira era mais firme.
Menos rangidos e mais segurança para minhas fugas.
Nem tudo é perfeito, na curva, em L para o largo corredor central até a saída, a envergadura das minhas pernas não permitiam a mesma técnica.
Ali eu tinha que ficar encostado na parede do lado direito, andando de perfil , como um Egypt.
O espaço dos meus pés,tinham que permanecer bem alinhados na borda e chegar assim ate a porta de entrada/saída da casa.
Esse périplo para atravessar o corredor, que demorava intermináveis vinte minutos, ganhava um agravante.
Exigia que eu sequenciasse os meus passos ao ronco do meu pai.
Cada passo era efetuado em sintonia com as tremendas inspirações sonoras da sua respiração, partindo do princípio que, o barulho que ele mesmo produzia roncando, coincidia e escondia os gemidos do assoalho.
Essas fugas significavam noitadas no Gibus Club, rue du Faubourg du Temple, a uma quadra da Praça de la République, uma instituição do Rock em Paris.
Essa casa noturna era escondida entre as arcadas atrás do portão de um prédio antigo.
Templo do rock, sujo e grosseiro, ali se apresentava as melhores bandas nacionais e internacionais underground.
Tive o imenso privilegio de ver, muito de perto, bandas importantes como MC5, o precursor do Hard Rock; Sex Pistols; Johnny Thunders; Patti Smith; J Geils Band; Dr Feel Good.
E muitos outros nessa atmosfera quente, carregada de cheiro rançoso do local, da mistura de suor, tabaco frio e cerveja derramada impregnada nas paredes e no mobiliário de veludo velho.
Predominava ali o preto lustroso pelo tempo, tudo envolvido pela permanente suspensão de fumaça de cigarro.
Voltava para casa pelo mesmo caminho que tinha saído depois das quatro da manhã, completamente extenuado mas entusiasmado pela noite infratora e rica em emoções.
Meu pai nunca soube, mesmo quando me tornei adulto.
Até o dia de seu falecimento, não tive oportunidade de lhe contar.
Gostaria de tê-lo feito, certamente teríamos nos divertido juntos dessas passagens.
Décadas depois, nos final dos anos 90, o Gibus virou “Favela Chic” a famosíssima casa noturna brasileira em Paris que também hoje não existe mais.
Termino este capitulo com Dr FeelGood e o titulo “Because Your Mine” que vi duas vez tocar no Gibus Club.
Uma das melhores bandas que acompanhei neste inferno do Rock.
Semana que vem, tem mais com a minha saída definitiva e para sempre da escola, do internato e da vida confortável de filho de médico.